As Crônicas da Nova República Paulista – Carga Internacional – Parte 4

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Voamos até Pinheirinhos, e mais de uma vez o carro perdeu totalmente o contato com o chão, devido às imperfeições da estrada tão gasta, e, chegando na cidade, não houve a mesma reverência que tivemos antes da fronteira. Eu ainda não tinha decidido se tinha feito a escolha certa. Depois de entender que a carga eram armas, o mais certo seria retornar e deixar aquela caminhoneira sozinha. Mas eu a tinha cercado com meu acordo, e como os 400 duques em minha carteira comprovavam, ela não era uma pessoa de meias medidas, nem de descumprir acordos.

– Ali! – apontei para uma saída entre o guardrail e umas árvores feias – entre ali!

Caminhão na estrada

Eddie não perguntou, apenas desacelerou o suficiente e se embrenhou no caminho que apontei. Após pouco mais de seiscentos metros de terra, a estrada de manutenção ganhou pavimento e a motorista encostou o acelerador no assoalho, enquanto eu rezava para o cinto de segurança me manter vivo caso batessemos. A estrada era quase reta até nosso destino, e não estava nem de longe tão maltratada quanto a principal.

– Quanto tempo até Santana do Capivari? – ela perguntou.

– Nessa velocidade, não mais do que – fiz os calculos três vezes antes de responder – trinta minutos.

– E quanto tempo eles demorarão?

– Tendo que levar o caminhão na estrada acidentada, considerando dois bloqueios por problemas na pista – não era uma estimativa fácil – não menos do que duas horas. Se fosse chutar, diria três, mas talvez Cobretti seja mais ousado do que imagino.

– Ele vai levar três então – ela disse – não me pareceu o tipo de cara que corre mais riscos do que o necessário – eu lembrei do dilacerador na traseira e concordei – Além disso, não tem porque achar que conseguimos um carro, nem que conseguimos um tão rápido.

Eddie fez a distância em vinte e cinco minutos. A estrada voltou a ser de terra por um período e as margens ficaram com uma vegetação médio alta. Seguimos mais lento por ali e depois entramos na abertura que dava para a estrada normal, e Eddie nos guiou até a cidade.Não havia palavras para descrever o desastre.

Lembrei-me das cidades antes da fronteira entre os dois países. Cachoeira Paulista e Cruzeiro eram ruínas, apenas uma casca do que foram um dia, mas era óbvio que a violência ali havia ficado para trás, os escombros eram cinzas e feios, mas também dormentes e velhos, com poucas pessoas os usando como abrigo.

Santana do Capivari estava no olho do furacão. Casas estavam aos pedaços, mas ainda desmoronando. Buracos de bala cravejavam as laterais de todos as construções a vista, e era possível ver fogo em outras a distância. Pessoas se escondiam debaixo de escombros que perigavam cair a qualquer momento. Eu conseguia escutar gritos de tempos em tempos e o cheiro acre de coisas e carne queimando invadia minhas narinas. Era uma cidade muito mais rural do que as anteriores, e a vegetação em volta que havia queimado apenas dias atrás ainda fumegava e fedia.

– Eu achei que a revolta estivesse mais ao norte – disse Eddie, olhando para toda a devastação.

– Parece que já chegou até aqui.

Tive medo de Eddie parar o carro ali, pois alguns dos sobreviventes olhavam para o Maverick com clara volúpia. Alguns grupos estavam tentando se esconder do nosso carro, e era difícil saber o que era rua e o que era calçada, ainda mais que boa parte das ruas eram de terra também. Passamos por uma igreja que diferente de todo o resto, erguia-se inteira e sem buracos de bala e não era habitada por ninguém. Ao lado da igreja havia um teto de madeira, fundo e largo, improvisado de última hora, e algumas ferramentas jogadas embaixo do coberto.

Após um reconhecimento do lugar, Eddie acelerou e fez a volta, indo para a estrada de onde viemos, só que ao invés de entrar na de manutenção, guiou até a principal, de onde viriam Cobretti e seus capangas. Andou mais alguns metros para se distanciar da cidade e parou depois de um guardrail, tentando se camuflar pela vegetação mais densa.

Era um plano ridículo, mas eu não tinha nada melhor em mente, por isso não disse nada.

– Eddie – eu me toquei de algo que não tinha pensado antes – eles estarão armados agora. Que chance nós temos? – e me odiei por minha voz ter saído trêmula.

Ela buscou algo no bolso traseiro, e mostrou na palma de sua mão uma chave cromada grande.

– Eles não conseguirão abrir a carga rápido, essa é a chave. Com um maçarico industrial é bem possível, mas vai levar tempo e eles não conseguirão fazer isso com Leôncio em movimento – então ela guardou a chave de novo.

Então um plano se formou em minha cabeça.

– E por que paramos aqui? – perguntei para a motorista.

– Não é óbvio? – ela respondeu olhando para a estrada – esperamos eles passar, então damos perseguição. Pegamos tudo de volta, você guia esse carro e eu guio o caminhão até a fronteira.

– Eles têm o caminhão e dois carros, Eddie.

– E?

– E como esse plano vai funcionar?

Ela resmungou algo baixo e depois respondeu.

– A gente improvisa na hora.

– Eu tenho um plano – eu disse no tom de voz mais casual que pude arranhar.

Ela não perguntou qual era meu plano. Eu esperei por mais cinco minutos, mas ela não disse nada.

– Você não quer saber meu plano?

– Não. Você cumpriu sua parte no acordo, isso é bom. Agora eu vou resolver a situação. Só tente ficar longe deles e não deixe te pegarem – então olhou para mim – caso tenha se esquecido, foi como eu perdi o caminhão da última vez.

Eu pensei no que ela disse por um tempo, e seria cômodo deixar ela fazer a loucura que quisesse. Ser pega talvez, derrotada com certeza. Decidi que ajudaria, mesmo contra sua vontade.

– O plano é simples – e antes que ela pudesse reclamar – escondemos o carro atrás da igreja, no centro, de modo que quem parar ali não consiga ver o Maverick. Então esperamos eles entrarem para descansar e se organizar, sabotamos os carros e pegamos o caminhão.

– Eles tem a chave do Leôncio.

– E eu tenho certeza que você tem uma reserva, ou sabe ligar ele sem a chave.

Ela sorriu em resposta, mas então perguntou.

– E por que eles parariam na igreja?

Apenas balancei os ombros. Eddie pesou o que eu disse.

– Você tem certeza, Max?

– Absoluta.

– E se eles passarem reto?

– Não passarão. Pode ligar o carro e estacionar atrás da igrejinha.

As engrenagens pareciam estar fervendo na mente de Eddie. Ela sabia que meu plano era bom, embora não entendesse como eu podia ter certeza que Cobretti pararia na igreja. Deu partida no carro e seguiu até o lugar, fazendo o possível para não chamar atenção de ninguém no caminho, e falhando miseravelmente.

Estacionamos e ainda tinha meia hora para eles chegarem, se Eddie estivesse certa sobre Cobretti. Ficamos em silêncio, e Eddie deu uma vasculhada no porta luvas e porta malas por ferramentas que ela usaria para cumprir o planejamento. Eu já sentei no banco do motorista, para ir me acostumando com os controles daquela máquina.

Estávamos os dois sentados e preparados quando uma batida no vidro nos assustou. Era apenas uma menina, com seus onze, doze anos e com um olhar triste para nós.

– Moça, você tem um carro bonito. Pode me dar um dinheiro?

Não seria a primeira nem a última pedinte naquela cidade tão sofrida. Eddie buscou na carteira e entregou um duque para a menina.

– Entregue para seu pai comprar comida – ela disse com genuína atenção.

A menina pareceu confusa por um segundo.

– Onde está seu pai? – eu perguntei, já temendo pela resposta.

– Eu não sei – respondeu a menina.

– Sua mãe? – foi a vez de Eddie, mas a menina apenas balançou a cabeça novamente. Ela tirou mais três duques da carteira e entregou.

– Cuide bem do dinheiro, e não mostre para ninguém que o tem. Compre comida que dure sem estragar, ok?

Vinte minutos depois da menina se afastar ouvimos o ronco de Leôncio, e o ruído do freio sendo maltratado pelo tal Plínio. Eddie trincou a mandíbula de raiva, mas manteve o silêncio. O som foi se aproximando, aproximando, até ficar claro que estava do outro lado da igreja, então parou e silenciou. Eddie me olhou curiosa e eu só balancei os ombros de novo, fingindo não estar tão aliviado por ter acertado.

Então vieram as vozes, alegres e satisfeitas, sabedoras que haviam conseguido cumprir seu objetivo. Eddie retesou o corpo e se preparou para começar o seu trabalho.

– Espere o meu sinal – ela disse, então abriu a porta fazendo o mínimo de barulho possível – Quando eu der o sinal, você liga o carro e sai pela estrada que viemos. Não saia tão rápido, porque eu vou te seguir de perto, e dentro da cidade o Leôncio não vai conseguir acelerar muito.

Eu acenei positivo com a cabeça e me coloquei a postos. Eddie se afastou do carro e grudou na parede traseira da igreja, se esgueirando passo a passo. Quando chegou na borda, um homem apareceu e a viu, mas antes que pudesse gritar, ela saltou sobre ele, tapando sua boca e lhe aplicando um mata leão. Ele desmaiou sem maiores alardes, e Eddie olhou para mim satisfeita, fez um “sim” com a cabeça e saiu do meu campo de visão.

“O ‘sim’ foi o sinal?” foi o meu primeiro pensamento, logo descartado, mas que levou ao segundo.

“Qual vai ser o sinal? Não deveríamos ter combinado um sinal?”

Senti o suor frio escorrendo em minha nuca. E se eu não entendesse o sinal? E se Eddie corresse em disparada com o caminhão e eu ficasse parado ali? Ela me buscaria? De repente, combinar o sinal parecia a coisa mais simples que poderíamos ter feito e não fizemos.

Tentei me manter calmo e alerta para qualquer sinal que fosse. Os minutos foram passando arrastados e eu conseguia ouvir homens conversando do lado de dentro, mas nenhum ruído de Eddie cumprindo o plano. Ou ela era muito boa mesmo, ou então…

“Ela foi capturada” minha mente gritou, mas era idiota pois não houve sons de luta, e Eddie não seria pega sem uma boa luta. Continuei firme, apenas esperando o sinal, fosse ele qual fosse.

Então os sons de conversa pararam de repente.

“Seria esse o sinal?”

Passos ecoando dentro da igreja.

“Sinal, é você?”

A porta da frente da igreja se abrindo.

“Talvez 55% de chances disso ser o sinal?”

Vozes gritando e dando ordens.

“Tenho quase certeza que esse é o sinal” eu pensei enquanto girava a chave do Maverick.

– Puta que pariu! Max! Acelera, caralho! – era a voz de Eddie, agora abafada pelo som de Leôncio.

Apesar da tensão do momento, uma parte de mim relaxou “Esse é o sinal, agora é certeza” e saí com o carro em disparada pela porta de entrada, riscando a lateral no portão. Pude notar Cobretti ordenando os homens para um veículo e ele entrando no outro, um opala, com o tal do Plínio no volante, mas fiquei tranquilo porque sabia que Eddie havia sabotado os carros, conforme combinado.

Assim que saímos da cidade e pegamos a estrada, eu estava dirigindo a passeio até que ouvi a buzina de Eddie. Num primeiro momento, não entendi porque ela parecia tensa então vi Cobretti na traseira, fazendo força para passar e Eddie fechando. Apertei o acelerador e o carro esticou rápido.

Diminui um pouco quando vi que estava me distanciando demais. Eddie balançava o caminhão na pista, evitando a passagem do carro perseguidor e eu não sabia bem o que podia fazer para ajudar. Plínio acelerava e diminuía, conforme Eddie fechava sua passagem, e parecia mais tenso a cada segundo. Cobretti tinha a expressão séria e focada.

Eu diminui um pouco para ficar mais perto do caminhão, mesmo sem ter muito o que fazer nessa situação. Eddie buzinou e eu não entendi o que ela queria dizer, até que me assustei com um enorme buraco na estrada. Precisei frear com violência e assim que passei pelo buraco, escutei os apitos do caminhão aplicando todos os seus freios.

O opala de Plínio e Cobretti passou a esquerda de Leôncio e se posicionou logo atrás de mim. Pelo retrovisor vi Eddie socando o volante enquanto dava perseguição, e Cobretti tinha um pequeno sorriso de triunfo. O carro deles estava entre o caminhão e Maverick, então entendi o plano.

Com medo, acelerei o máximo que pude para me distanciar, mas eles me acompanharam. Eddie arrancava o máximo de Leôncio, mas velocidade não era o forte do caminhão. Ela poderia deixar a carga para trás, mas não tinha tempo para isso agora, mesmo se quisesse. Eu corri como nunca tinha corrido na vida, escapando dos buracos por um triz, mas Plínio estava ganhando terreno. Ele estava tirando leite de pedra naquele opala, mostrando que era um excelente motorista e eu era só um navegador.

Eles foram crescendo no meu retrovisor central, pouco a pouco, enquanto Eddie ia diminuindo de tamanho devido a nossa velocidade. Quando estavam bem próximos, passaram para o meu retrovisor direito e aplicaram pressão sobre a traseira do meu carro, forçando o que eu conhecia como uma manobra pit. Eu não sabia como me defender disso, portanto só apertei o freio e joguei o carro para cima deles.

Tudo aconteceu de uma vez.

A careca de Cobretti apareceu em minha janela enquanto o Maverick se jogava para fora da pista, levando o carro deles junto. Ouvi um grito, mas não sabia se era de Plínio, Cobretti ou meu. A vegetação esbarrava no carro a minha volta e eu chacoalhava o volante, tentando ganhar algum tipo de controle de novo.

Foi quando a árvore cresceu em minha frente e tudo ficou escuro.

CONTINUA

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