A Decisão de Fred – Parte 2

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Fred se virou para a segunda tela e começou a buscar as informações necessárias com a velocidade que só a prática consegue trazer. Por outro lado ele sentiu o suor na nuca, pois sabia o peso do que teria que decidir.

O primeiro paciente, Sandoval Pereira, constava na casa dos quarenta anos, sexo masculino, corte abdominal e sangramento agressivo. Estava em boa forma e, se entregue a operação tinha noventa e sete por cento de chances de sobrevivência. O cálculo mostrava 439 de Valor Integrado.

A segunda paciente, Mirtes Trindade, era uma mulher, na casa dos sessenta anos, vítima de três tiros no tronco. Tinha problemas de movimentação e fraqueza nos ossos. O computador acusava 461 de Valor Integrado, e a chance de sucesso na cirurgia era de setenta e nove por cento.

Poucos segundos seriam a  diferença entre a vida e a morte de um deles, e Fred precisava escolher o caminho rápido. Quando os sistemas fossem integrados, Fred contava que a decisão de qual paciente operar levasse em consideração não só o Cálculo de Valor Integrado, mas as chances de sobrevivência também, além de demais características. Essa seria a decisão mais justa.

“Mas também, quando tudo estiver integrado, para quê precisarão de alguém operando o maquinário…” ele interrompeu o pensamento improdutivo e continuou sua veia decisória.

Levou uma eternidade para ele, mas a decisão foi tomada em menos de dois segundos. Se fosse rápido o suficiente, e o maquinário não acusasse necessidade de manutenção, talvez fosse possível operar o outro paciente.

Digitou no primeiro terminal os comandos para solicitar a entrada do homem. Mesmo que o Cálculo acusasse a segunda paciente como tendo um maior valor social, o homem tinha mais chances de sobreviver, era mais novo e forte.

Ele mal havia terminado de digitar a última tecla, e a enfermeira magra e alta trazia o homem com o enorme corte no peito.

“Qual é o nome dessa enfermeira?” ele pensou enquanto esperava o sistema entrar em ação.

Novamente a peça desceu em velocidade espantosa, parou a poucos centímetros da mesa de operação e salvou a vida do homem caído, erguendo-se para o teto novamente, dando o sinal verde para Fred avaliar se haveria necessidade de manutenção.

A menos que algo estivesse terrivelmente avariado, Fred daria o sinal verde para a outra paciente entrar na sala de cirurgia. Talvez fosse possível salvar os dois. Os olhos do analista correram pela tela, avaliando peça a peça, com a velocidade da prática e da emergência.

“Tudo ok!” ele pensou enquanto corria os dedos para solicitar a entrada da segunda paciente. Foi quando notou que os aparelhos já acusavam que ela havia “atingido o ponto de não retorno”. Não havia mais o que ele podia fazer por ela.

“Merda!” ele socou a mesa. Isso com certeza afetaria o seu bônus mensal. Era a primeira baixa que teve no período e, quando vissem que a paciente falecida tinha um Valor Integrado mais alto do que o que foi salvo, ele teria muito a explicar.

“Não vai dar problema” ele pensou, se acalmando. Sua decisão não havia sido absurda e ficaria tudo bem. Mas o stress e o dinheiro a menos o fariam perder alguns cabelos.

O enorme alarme em sua sala apitou de novo, e de novo ele se jogou sobre os computadores.

Paciente um: Landu Malta, sexo masculino, trinta e cinco anos, setenta e três por cento de chance de sobrevivência e 480 de Valor Integrado.

Paciente dois: Patricia Miranda, sexo feminino, quinze anos, sessenta e nove por cento de chance de sobrevivência e 495 de Valor Integrado.

Não precisou nem dos dois segundo para pedir a entrada da segunda paciente. Era muito mais nova e tinha o Valor Integrado maior, poderia contribuir muito para a sociedade por muitos anos ainda. A chance de sobrevivência era menor, mas não por uma larga margem.

A enfermeira trouxe a paciente e Fred viu que era quase uma criança, pequena e frágil. Um ferimento feio no braço e muito sangue na região do estômago, fruto de uma perfuração. Ele deu o comando para a máquina executar a operação.

Como sempre ela desceu e agiu rápido, mas dessa vez havia algo diferente. O ferimento no braço foi simples de fechar, mas o da barriga foi sendo trabalhado. Pelo painel, Fred viu o primeiro paciente, Landu, passando pelo ponto de não retorno, enquanto isso, Patrícia lutava para se manter viva na mesa de operação. A máquina tentava várias manobras para cuidar da perfuração, mas Fred via que ela era larga e profunda.

Foi quando a máquina parou toda a movimentação e se ergueu para o teto novamente. Os sinais vitais de Patricia acusavam a chegada ao ponto de não retorno, portanto continuar a tentativa de salvar sua vida resultaria apenas em mais perda de tempo.

Fred deu outro murro na mesa. Três óbitos em suas mãos em apenas uma tarde. Todo o trabalho do mês jogado fora, e muitas explicações para dar. Ele olhou para o pequenino corpo na mesa e deixou os ombros caírem.

Antes que pudessem mandar outro paciente para ele, Fred apertou o botão de pausa. Ele precisava tomar um ar. Revisou o maquinário e foi em direção ao refeitório novamente, levando consigo o ‘O Prelúdio da Guerra’.

Não deixou seus pensamentos irem para os problemas, focando apenas no livro. Paran conseguiu o apoio dos Marja e do Povos Livres, e agora unia todos os oprimidos contra a tirania dos Tragors. Se vencesse poderia libertar não só os povos, mas também sua esposa e filho, tudo dependia dele mesmo agora…

“Dia dificil?” veio a voz de Marcos, chefe de Fred.

“Ah” ele respondeu olhando para o outro “não fácil, com certeza. Duas Decisões Críticas em uma tarde não é muito comum”.

“Com certeza” disse Marcos “Não dá para saber o que tem acontecido, mas estamos tendo várias. Três óbitos hein? Depois de um mês inteiro passando bem”

“Você vê?” disse Fred “Tem dias e dias. Esse escolheu me sacanear”.

O chefe olhou para ele profundamente antes de perguntar.

“Você está bem?”

Fred sabia o que significava a pergunta.

“Sim. Precisei de uma pausa só, estou aproveitando para seguir a orientação do analista emocional e distanciando meus pensamentos do stress” e ergueu o livro.

“Bom” disse Marcos “Isso é bom. Lembra que é só trabalho. E tenta já ir vendo o próximo livro. Pelo jeito está terminando esse”.

“Pode deixar” disse Fred enquanto o chefe se afastava.

Sim, estava terminando, mas ainda tinham umas boas cinquenta páginas, o suficiente para chegar até o final da semana. O analista continuou a leitura. Paran se encaminhava para a sala onde seu conselho de guerra estava reunido, pronto para discutir os próximos passos.

Assim que o herói entrou no recinto, Fred leu a enorme palavra no final da página.

FIM.

Ele voltou duas folhas para trás, foi para a frente e não entendeu. Ainda faltavam cinquenta páginas. No desespero, virou para a frente e notou que eram propagandas de outros livros. Uma entrevista com o autor. Imagens de leitores.

“Não pode ser” ele pensou enquanto passava a mão nos cabelos “Não pode ser”. Ele se lembrou que o próximo livro da série ainda não havia saído. O que aconteceria a seguir? Ele precisava saber o que aconteceria com Paran.

Ele não se lembrava claramente de como tinha voltado de sua pausa, nem de como dera o sinal que estava pronto para reiniciar suas atividades. O próximo paciente entrou e ele nem se interessou em saber seu Valor Integrado.

“Como Paran vai resolver o problema na fronteira sul?”

A enfermeira trouxe o seguinte, mas Fred estava absorto demais em seus pensamentos. Saber como a guerra se desencadearia era a única coisa que ocupava sua mente. Os pacientes foram indo e vindo, e Fred apenas confirmava que os instrumentos estavam em funcionamento, num metódico e mecânico exercício.

“Não é possível, quanto tempo ainda para lançar o próximo livro?”

Os pacientes foram indo e vindo, sob a tutela ágil da enfermeira, que agora era apenas uma peça de fundo na visão de Fred.

“Ela era tão nova”

Foi quando o alarme soou novamente. O analista estava anestesiado, portanto seu tempo de reação foi muito pior aos anteriores. Ele abriu o sistema e buscou o Cálculo de Valor Integrado dos dois envolvidos.

Paciente um: Francisco Peres, sexo masculino, dezesseis anos, noventa e dois por cento de chance de sobrevivência e 680 de Valor Integrado.

Paciente dois: Alfredo Gomes, sexo masculino, sessenta e nove anos, cinquenta e sete por cento de chance de sobrevivência e 297 de Valor Integrado.

A solução era mais do que óbvia e Fred começou os comandos para a entrada do primeiro paciente até que sentiu a espinha arrepiando. Por um instante a sensação foi tão forte que ele não soube como reagir, ficou apenas olhando para a tela em branco. Foi quando entendeu o que estava fazendo, confirmando o nome do segundo paciente.

“Alfredo Gomes” veio sua mente “Alfredo Gomes, o escritor. Autor da série que estou lendo”.

CONTINUA

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