As Crônicas da Nova República Paulista – Carga Internacional – Parte 2

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– E que horas paramos para almoçar? – minha barriga estava roncando.

– A hora que der fome.

– E se já estivermos com fome?

Caminhão na estrada

Eddie apenas bufou e não respondeu. Ela já havia reclamado umas cinco vezes da estrada e de como não estava conseguindo acelerar. A BR-116, nem tão antiga, mas já desgastada pela quantidade de conflitos que a usaram como via arterial, descascava e esfarelava sob as rodas grossas de Leôncio.

Eddie já estava consciente que o plano era na 116 até pouco depois de Cachoeira Paulista, e então viraríamos na 52 para chegar na fronteira entre os dois países. Pelos cálculos, só a restrição de não passar pelo território do Rio de Janeiro aumentaria em mais de 50% o tempo de viagem.

– Por que não vamos pelo Rio mesmo? Nem passaremos pela cidade, mas só esse cotovelo que vamos ter que fazer vai fazer você gastar tão mais combustível.

Eddie mastigou minhas palavras e respondeu.

– Quem vai gastar esse combustível?

– Você.

– E por que você está reclamando então?

– Você me contratou como navegador, estou.. bem, navegando. Sabe, dando opções.

– Já expliquei – ela disse – minha carga não pode passar pelo Rio. Não a cidade, o território inteiro.

Ela não havia explicado isso. Tinha apenas dito que não iriam pelo Rio e eu me vi, não pela primeira vez, imaginando porque não tinha perguntado mais coisas antes de aceitar.

– Por que a carga não pode passar pelo Rio?

– Carga proibida no Rio.

– Isso eu já entendi, mas eu quero sabe…

– Quer saber porra nenhuma. Precisa saber que não vamos pelo Rio e isso é tudo. Vamos segurar um pouco em Cachoeira Paulista, tem uma parada boa ali, gordurame barato e de qualidade.

– Mas…

Antes que eu pudesse continuar ela desligou o rádio de comunicação e ligou o de música, num samba dos bons. Pelo menos tinha bom gosto musical. O som foi interrompido para uma notícia de última hora sobre novos confrontos separatistas no Mato Grosso do Sul, e eu me perguntei, não pela primeira vez, quando os combates teriam fim.

Passamos em silêncio por Lorena e depois Canas sem muita movimentação. As estradas ali ao norte estavam vazias, exceto por um caminhão ou outro levando alimentos, nenhum tão grande quanto Leôncio. Os poucos carros estavam gastos e eu duvidava que qualquer um deles ousasse pegar algo mais longe do que 100 quilômetros.

Eddie baixou o volume conforme nos aproximamos do lugar. Cachoeira Paulista mostrava os ferimentos ainda abertos da Libertação Paulista. Não havia nenhuma construção maior do que dois andares, todas as outras estavam destruídas, demolidas ou abandonadas à própria sorte.  Muitas ruas estavam cobertas por escombros e se tornaram intransponíveis, enquanto outras haviam sido limpas apenas de um lado, possibilitando um veículo passar por vez. Era óbvio que Eddie já conhecia o lugar, pois ela cumprimentou alguns vigias e levou Leôncio até uma parte central da cidade. Ainda seria considerada uma cidade?

O restaurante onde ela parou se chamava Lombo de Robalo, e eu nem sabia que robalo tinha lombo.

– Que coincidencia, Boi está por aqui.

– Boi?

Ela apontou para um caminhão tão grande quanto Leôncio, mas com uma carroceria mais curta e simples, de um vermelho fosco, porém bem cuidado, com um enorme adesivo de ferradura na porta do motorista.

– Um caminhoneiro. Normalmente leva materiais de construção.

Depois que ela parou, entramos no lugar. A cidade podia estar destruída, mas o interior do restaurante era arejado e limpo, apesar de simples. Mesas e cadeiras de madeira e toalhas verde escura, para disfarçar a sujeira, decoravam o salão que deveria comportar trinta pessoas. O cheiro de peixe empesteava o lugar, mas não era de todo desagradável. Haviam apenas três das mesas ocupadas, a do fundo com um homem alto e largo, portador de um chapéu de boiadeiro e um bigode ferradura, rodeado de oito pratos com comidas diferentes. Quando ele nos viu entrando abriu os braços em boas vindas e se ergueu para nos cumprimentar.

Quanto mais ele chegava perto, menor eu me sentia, e ele se movia com tanta determinação que mais parecia estar a caminho de uma briga. Mas havia uma suavidade e gentileza no olhar que contrastava com todo o porte e atitude. Sem mais palavras ele se aproximou e abraçou Eddie.

– Edmunda Sartenha! Como é bom te ver de novo!

– Posso dizer o mesmo, Boi – então apontou para mim – esse é Max, meu navegador.

O homem mediu a mão que ergui para o cumprimento antes de a aceitar e, pela dor que causou, tentar quebrar todos os ossos. Seu aperto de mão parecia uma prensa e eu fiquei muito feliz quando ele soltou.

– Prazer, Max – e a voz dele parecia um trovão. Então se voltou a Eddie – não sabia que você estava precisando de navegador. Sem ofensa, rapaz.

– Vou atravessar a fronteira – ela respondeu.

Boi mastigou as palavras e pensou antes de responder.

– Minas Gerais não é um lugar bom para visitar agora, Eddie – ele disse e se virou fazendo sinal para o acompanharmos até a mesa.

– Eu sei – ela disse assim que se sentou – por isso que contratei um navegador.

– Não estou dizendo pelo caminho, e sim pelo perigo – ele coçou a cabeça – Sabe, o pessoal de Minas está tentando seguir nosso exemplo.

Ela ergueu as sobrancelhas e não achou que valia a pena responder. Quando o garçom veio, ela pediu o virado à paulista para dois e fez questão de me lembrar que eu teria que pagar pela minha metade. Os dois caminhoneiros trocaram amenidades e notícias sem importância por um tempo e eu pude notar que Eddie, apesar do eterno mal humor e esforço em ser desagradável, tinha real afeição por Boi. Quando ele contou que sua quarta filha acabara de nascer, a caminhoneira chegou a erguer o punho em comemoração. Quando estava quase terminando de comer, Eddie abriu o jogo.

– Estamos indo para Vitória.

– E por que vão para Minas? – perguntou Boi enquanto ajeitava o bigode – É só seguir na 116 que vão continuar no caminho.

– Não posso passar pelo território do Rio de Janeiro.

A expressão de Boi endureceu o suficiente para eu me sentir ameaçado, e o ar outrora amistoso ganhou contornos de enfrentamento.

– Drogas? – ele perguntou.

– Não – respondeu Eddie de boca cheia.

– Cigarro?

– E eu vou perder tempo nisso com um caminhão do tamanho do Leôncio?

– Resíduo tóxico?

– Por que eu iria até Vitória para descartar?

Boi fechou ainda mais a cara e eu percebi que Eddie não evitava a encarada. Eu não entendi bem o porquê da hostilidade, mas larguei o garfo sobre a mesa e tentei me afastar um pouco para o caso das coisas esquentarem. Eu estava com Eddie a pouco menos de um dia e já estava me acostumando a sua ânsia em comprar qualquer briga.

– Você pelo menos sabe o destinatário?

– Uma empresa. Não conheço – e Eddie chacoalhou os ombros – Não é da minha conta.

– Claro que é! Você que está levando a carga!

– Alguém vendeu e alguém comprou. Eles se entendem. Eu só entrego.

Boi jogou as mãos para o alto exasperado.

– Pelo amor de Deus Eddie, você sabe que não é tão simples assim.

– É tão simples quanto pode ser.

Boi baixou a cabeça e levou uma das mãos a testa. Parecia pensar no que iria responder e não estava disposto a deixar Eddie vencer a discussão, mas ela interrompeu seus pensamentos.

– Eu sei que você tem seus motivos para não concordar, mas não muda o fato de eu ter que cumprir meu trabalho. Trabalho é trabalho, Boi. Você sabe disso.

– Não se esconda atrás disso. Trabalho é trabalho, mas você é responsável pelas coisas que faz – ele se levantou da mesa e deixou algumas notas ao lado dos pratos – você sempre pode dizer não.

Ele se afastou e eu pude soltar a faca junto com um suspiro de alívio. Por alguns momentos eu achei que fossem se atracar ou que a discussão fosse piorar, mas tudo terminou rápido e sem maiores problemas. Mas a troca também atiçou minha curiosidade, e assim que ouvi o caminhão de Boi se afastando puxei o assunto.

– Eddie… o que estamos levando?

Ela olhou para mim com desprezo e nem teve a dignidade de responder, voltando sua atenção para a comida.

– Por que Boi ficou tão incomodado quando você escondeu o que era a carga?

– Puta merda, Max, eu escondi o que? Ele soube logo o que era a carga, por isso ficou daquele jeito.

– Mas você não fa…

– Eu não falei, mas qualquer idiota teria entendido. Boi perdeu dois filhos na Libertação, um deles o mais velho, por isso leva tanto para o lado pessoal.

Comi em silêncio depois das novas cortadas que ela me deu. De canto de olho pude perceber tristeza em seu rosto, e um olhar pensativo para o prato, mas não me atrevia a tentar arrancar mais informações dela. Era uma bruta sem qualquer preocupação com o bem estar dos outros.

Quando terminou de comer, ela deixou duas notas sobre a mesa e nos dirigimos até Leôncio, e eu fiquei feliz dela ter esquecido o que tinha dito anteriormente e pago minha parte. Assim que nos sentamos ela perguntou.

– Seu planejamento é seguirmos norte agora até Cruzeiro, certo?

– Sim. Poderíamos ir até Queluz ao leste, mas aí passaríamos uns 30, 35 quilômetros no Rio de Janeiro. E isso não é uma opção, pelo que você me explicou.

– Depois de Cruzeiro… – ela indicou para eu terminar.

– Como você já viu – fiz questão de cutucar – a próxima cidade é Pinheirinhos, já em Minas Gerais. Teremos que passar pelo controle de fronteira, bem na divisa entre São Paulo e Brasil tem um posto que antes era mirante. Lá vão pedir os documentos, mas não conta como uma parada mesmo.

– Não quero passar por ali. Me dê outra opção.

– Não tem. Se dermos a volta por trás, aumentamos muito o caminh…

– Não tem problema, qual é essa volta?

– … Além de também ter um posto de fronteira lá em Piquete também – tentei continuar meu raciocínio – essa parte da fronteira é mais vigiada por conta de todo o histórico da guerra. Se quiséssemos seguir por uma estrada de terra ou manutenção, o ideal seria ir por Ribeirão Preto ou São José do Rio Preto, mas você não disse que queria passar despercebida. Além disso teria sido uma volta gigantesca.

Ela se apoiou no volante e seus olhos ganharam um contorno pensativo. Achei que ela precisava de incentivo.

– A fronteira é só uma formalidade. Do lado de lá eles estão tão ocupados que nem vão olhar na nossa cara. Do lado de cá… bom, como paulistas temos muitos preconceitos, mas dificilmente entre nós mesmos. Nem devem nos parar.

Eddie olhou para mim por um momento e acenou em concordância, mas então se virou para frente e voltou a ter o olhar perdido para a estrada.

– Você perdeu alguém na Libertação?

Foi a primeira, mas não seria a última vez em que Eddie perguntou sobre minha vida pessoal.

– Não. Ou melhor, ninguém que me importasse.

– E alguma vez alguém te importou?

– Minha mãe. Mas isso tem muitos anos.

– Amigos? Namoradas? Primos?

Apenas acenei que não com a cabeça.

– Você quer me dizer que nunca teve amigos? – e a entonação de Eddie não tinha nada além de curiosidade.

– Acho que sim. Na infância com certeza, mas desde os meus treze, quatorze – apenas balancei a cabeça.

Sempre que eu dizia isso, as pessoas decidiam uma entre as duas possíveis reações; o olhar de julgamento que perguntava que tipo de monstro eu era para nao ter amigos, ou o olhar de pena falsa que precedia um flerte clássico “eu vou ser sua amiga, e algo mais”.

Eddie apenas concordou.

– Talvez eu devesse tentar isso um dia – e ligou Leôncio na direção de Cruzeiro.

CONTINUA

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