Fred vestiu sua melhor camisa naquela manhã, pois sabia que deveria parecer profissional. Foi de carro, outra raridade, para garantir a pontualidade e demonstrar comprometimento, como era de se esperar.
Um Procedimento Interno não era algo a ser ignorado. Fred passou boa parte da noite, bem como o começo da manhã internalizando suas justificativas e monólogos, explicando os motivos que o incentivaram a tomar a decisão de interromper a comunicação da máquina com o sistema central. Tudo mentira, claro, mas era o que precisava ser feito para ele ter alguma chance de manter o emprego.
Ele entrou na empresa e viu suas pernas o levando para a sala sete do corredor três. Era uma péssima ideia, que colocava todo o planejamento em risco, mas ele não conseguiu evitar. Uma diminuta parte de sua mente gritava para ele dar meia volta e ir para a sala de reunião, mas cada passo o impelia com mais decisão. Os rostos foram passando e ele não deu atenção a eles.
A sala, excetuando o próprio Alfredo, estava vazia, e isso era bom. Fred entrou no recinto e reparou na quantidade de máquinas que estavam a volta do autor. Muito mais do que o comum em pacientes que estavam em recuperação. Os tubos saiam de seus braços, pescoço, peito e cabeça. A respiração era pesada e controlada por uma bomba retrátil. Fred sentiu um misto de culpa, que sabia ser irracional, com felicidade por ve-lo vivo.
Os olhos de Alfredo abriram de repente. Fred sentiu o arrepio na nuca de quem foi pego em um ato ilegal. Após algumas inspirações de preparação, o escritor perguntou
“Médico?” numa voz baixa e frágil.
“Não, senhor” respondeu Fred “sou um analist…” ele se cortou “Eu sou um grande fã seu. Queria ver como o senhor estava”.
O homem enfermo olhou então para o teto e apenas respirou por alguns segundos. Parecia que cada entrada de ar o feria ainda mais.
“Dor” foi a única palavra que ele disse.
“Senhor” Fred se aproximou “Escute, eu preciso saber” então disse em voz baixa “Paran vence? Ele consegue libertar sua esposa e seu filho? Como ficam os demais povos? Eu preciso saber”.
Alfredo olhou para ele e inspirou mais algumas vezes. Seus lábios começaram a formar palavras, mas os olhos perderam o foco. Então o autor voltou a sua inconsciência. Por um momento Fred pensou que o homem faleceu, dada a gravidade de sua situação, mas os sinais vitais permaneciam estáveis.
A cabeça do analista ficou na sala de recuperação, enquanto ele se dirigiu a Sala de Reunião Doze.
“Sala de reunião” não era a melhor definição para o lugar. Três poltronas ficavam atrás de uma mesa, num patamar mais alto, alcançável por duas escadas laterais. A frente da mesa, e abaixo do palco, ficava uma pequena cadeira de madeira.
Ele seguiu para a cadeira ao centro, enquanto as três poltronas estavam ocupadas por pessoas que ele não conseguia ver bem. Se sentou sentindo os olhares superiores vindos de detrás da mesa.
“Você se atrasou” veio uma voz, de seu canto direito.
“Enfrentei um trânsito inesperado”.
“Sabendo da gravidade do tema, deveria ter saído mais cedo” veio uma voz, no centro agora.
“Sim. Sinto muito” Fred achou que a melhor postura nesse momento era subserviência.
Ruídos de papéis seguiram após alguns segundos. Alguns sussurros entre os três. Então veio a voz do centro novamente.
“Fred Silveira, Analista Técnico de Manutenção. Você sabe por que está aqui?”
“Sim” respondeu “Porque desliguei a comunicação entre o maquinário e o sistema central que calcula o ponto de não retorno”.
Alguns sussurros.
“Você poderia nos dizer por que desligou?” veio a voz a sua esquerda.
“Porque considerei que o paciente ainda tinha condições de sobrevivência” a resposta que ensaiou veio com naturalidade para os lábios.
“Isso significa que considerou o cálculo do ponto de não retorno como errado?” a voz veio do centro, mais afirmação do que pergunta, mas Fred sentiu que esperavam por ele.
“Sim, considerei errado”.
“Por que?” novamente a sua esquerda.
“Porque o paciente não parecia desgastado. Ainda se movia. Os sinais estavam fortes” sua voz tremeu um pouco no final.
“A chance de sobrevivência era inferior aos sessenta por cento, isso ao entrar na sala de operação” veio a voz a direita.
“Isso leva ao outro ponto” veio o centro novamente “A chance de sobrevivência e o Cálculo de Valor Integrado demonstravam esse paciente como menos valioso do que o outro envolvido na Decisão Crítica. Qual foi o processo decisório para escolha, sendo que os dois principais indicadores foram desconsiderados?”
“Alfredo é um autor famoso” respondeu Fred, esquivando da pergunta como havia planejado “O outro paciente não. Portanto…”
“Alfredo?” a voz da direita.
“O paciente salvo”.
“Como conhece o paciente?” perguntou o centro.
“Não o conheço pessoalmente” a esquiva veio natural para Fred.
Os membros sussurraram entre si mais um pouco.
“Disse que o paciente é famoso” veio a voz do centro “Como conhece o paciente?”
Fred suspirou.
“Li alguns livros dele”.
O silêncio, entrecortado apenas por canetas escrevendo e papéis sendo movidos, demorou alguns minutos para ser cortado.
“Sua decisão custou, e está custando, o equivalente a trinta e sete pacientes” veio a voz a direita “Alguma opinião em relação a isso?”
“Sim” disse Fred “Salvei a vida de alguém que havia atingido o ponto de não retorno. Isso mostra que o cálculo está errado”.
“Em que ponto estaria errado?” veio a voz a esquerda e Fred ficou confuso.
“Digo… o cálculo dizia para parar a operação, mas ao continuar o tratamento foi possível reverter o quadro”.
Dessa vez o silêncio foi completo.
“Você entende o que acabamos de dizer?” veio a voz do centro “Esse paciente está custando o equivalente a trinta e sete, e possui um Valor Integrado abaixo de trezentos”.
“Mas o cálculo…” tentou Fred, mas foi cortado pela voz a direita.
“O cálculo não fecha, tanto é que o pŕoprio sistema notificou ser mais barato e menos impactante interromper o tratamento”.
As palavras caíram como pedra na barriga de Fred.
“Fred Silveira, devido a sua conduta, você será desligado” veio a voz do centro “A segurança já foi notificada da decisão e se aproxima para levá-lo, por favor, permaneça sentado”.
Antes da palavra “sentado” terminar, Fred já estava correndo pela porta. A decisão foi tomada tão rápido que nem as figuras à mesa pareceram perceber sua reação. Ele correu sem se importar muito com os olhares a sua volta até chegar a seu destino.
Ele entrou no quarto e fechou a porta. Pegou uma cadeira e forçou na maçaneta.
Deitado na cama, desacordado, Alfredo se mantinha vivo com os aparelhos e o tratamento. Fred buscou outra cadeira e se sentou ao lado do escritor, olhando atentamente para os sinais vitais.
Ele precisava que o homem acordasse. Nem que fosse por poucos segundos.
“Sabemos que está aí, Fred Silveira” veio a voz da entrada “Por favor, abra a porta e nos acompanhe”.
“Senhor” ele sacudiu o ombro do escritor “Por favor, acorde. Eu só preciso saber uma coisa”.
Ocorreu a primeira batida na porta, que fez mais para acordar Alfredo do que o próprio Fred se ousava fazer.
Ele olhou ao redor da cama, assustado pela pancada, mas os olhos vieram para o rosto de Fred novamente. Eles se olharam alguns segundos, até vir a segunda batida na porta.
“Dor” foi a palavra que veio aos lábios do homem.
“Eu sei, senhor” disse Fred “A situação é grave, mas eu preciso saber: Paran consegue? Ele vence a guerra? Ele resgata sua mulher e seu filho?”
O escritor ficou confuso e não fez menção de responder.
“Seu livro, senhor” e as batidas ficaram mais frequentes “Guerra Total? Paran, o soldado?”
Alfredo olhou para o alto, buscando o que estava sendo perguntado.
“Paran” veio a voz, cheia de compreensão.
“Sim, senhor, Paran” a madeira cedia a suas costas “Ele vence? E resgata sua mulher e filho?”
A porta abriu de repente e homens se empurraram para dentro.
Alfredo olhou nos olhos de Fred, e o tempo correu mais devagar entre eles. Apenas uma palavra saiu dos lábios do autor.
“Sim”.
Fred sorriu enquanto os seguranças o levavam. Seus olhos derramavam lágrimas enquanto era arrastado.
Em direção de seu desligamento.
FIM
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