Não houve espaço para hesitação. Fred digitou a entrada de Alfredo Gomes e a enfermeira trouxe o homem para dentro da sala de operação.
Por um segundo Fred achou que ele estava acordado pois respirava rápido e os músculos do pescoço se contraiam, mas logo o analista percebeu que era devido a gravidade dos ferimentos. Haviam dois cortes profundos, um na perna esquerda e um no braço direito. Logo acima do ventre, uma perfuração empapava a camisa de sangue, apesar da gaze. Abaixo do pescoço, no começo do tórax, havia um ferimento estranho e comprido, que estava meio queimado e meio aberto. De perto Fred teria vomitado, mas estava longe o suficiente para não sentir o cheiro. Também estava hipnotizado pela situação que estava passando.
“Alfredo Gomes, na minha sala de cirurgia” pensou enquanto a máquina descia para começar a operação.
Embora os instrumentos agissem rápido, a ponto do olho humano não conseguir acompanhar tudo, os ferimentos eram vários. Os cortes foram fechados em questão de segundos, mas enquanto algumas pinças e seringas tentavam manter o ferimento no ventre fechado, todas as outras peças se envolviam na cura do peito. Uma raspagem foi feita no tecido morto, coletada por um microaspirador, enquanto a seringa de massa orgânica tentava fechar a parte interna do sangramento. Fred não fazia ideia de como a máquina conseguiria estancar algo daquele tamanho.
O paciente de fora acabava de chegar no ponto de não retorno, mas Fred não se importava. Seus olhos estavam ardendo, sem piscar, acompanhando cada passo da tentativa de salvar a vida do escritor. Foi quando notou um dos sensores se aproximando do fim, bem lento, mas a uma velocidade constante.
Alfredo estava chegando no ponto de não retorno, em trinta, talvez quarenta segundos.
A ação de Fred foi automática. Ele não pensou no que estava fazendo, nem nas consequências, mas foi tomado pela necessidade de agir. Ele sabia que a máquina receberia a informação sobre a futilidade de suas ações e interromperia a operação assim que o marcador chegasse no fim.
“Atrás da base de instrumentos, estão as placas lógicas” veio a voz do instrutor em sua mente, tanto tempo atrás “A de comunicação externa é essa verde limão”.
Quando viu, Fred já tinha aberto a porta de sua sala e entrado na de operação, com o corpo de Alfredo recebendo os cuidados. O cheiro estava abrandado, devido aos procedimentos já realizados, mas o tamanho da ferida ainda impressionava o analista.
Ele se aproximou da máquina, cinza e de um cromado brilhante. As peças se movendo, fazendo um mínimo de ruído metálico, e profundamente limpas. Os instrumentos com sua velocidade impossível.
Quando percebeu, suas mãos já abriam o compartimento de placas lógicas. Encontrou a verde e a removeu de onde estava encaixada. Não foi necessário muita força. Ele tentou fechar o compartimento, mas percebeu que se o fizesse, a placa voltaria para seu ponto de entrada, então deixou a peça encostada e voltou para sua sala.
Chegou a tempo de ver a agulha se aproximando do ponto onde a máquina interromperia o trabalho automaticamente. Ele sabia que removera a peça certa, mas havia aquela dúvida no fundo de sua cabeça.
O monitor apitou quando o Alfredo chegou no ponto de não retorno. Então apitou porque notou que a comunicação com os instrumentos estava falhando. Fred olhou cansado para as telas.
Ele sabia que não havia mais esperanças, mas não podia aceitar que o escritor iria morrer. Desligou o som dos sistemas e deixou os instrumentos trabalhando ininterruptamente.
A máquina, sem saber que o escritor chegara ao ponto de não retorno, trabalhava para sanar o peito aberto. De repente o maquinário se afastou, apenas o suficiente, e um pistão encostou no peito de Alfredo, e começou a fazer pressão. Fred nunca havia visto aquela peça antes. Então o pistão começou a apertar o peito do paciente numa velocidade constante. Aperta, solta, aperta, solta, aperta. Fred notou que os sinais vitais mostravam parada cardíaca.
Alguns segundos depois, a peça se afastou, e os instrumentos voltaram a atuar no peito. Fred achava que Alfredo já devia ter falecido, mas a máquina mantinha as tentativas.
Houve outra parada cardíaca. Então houve uma parada respiratória, que foi sanada com um respirador que Fred também não conhecia. Por quase duas horas a máquina trabalhou no corpo moribundo do escritor, enquanto o analista apenas observava. Depois do que pareceu uma eternidade, o maquinário se ergueu ao topo da sala, deixando claro ter terminado a operação.
Fred passou os olhos pelos aparelhos. O ferimento havia sido fechado, mas o custo havia sido alto. Algumas costelas quebradas. Respirando com ajuda de aparelhos. Medicação pesada para manter desacordado. Profundos e específicos cuidados nos próximos dias, uma lista tão longa que Fred não conseguiu ler tudo.
Mas estava vivo. O analista não conseguia entender como alguém poderia ter passado do ponto de retorno e continuar vivo.
Uma lágrima solitária escorreu de seu olho quando viu a enfermeira entrar na sala e levar o escritor para cuidados não emergenciais.
CONTINUA
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